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A polêmica Justiça Desportiva Brasileira

Publicado em 08/01/2020

O Direito Desportivo é um ramo jurídico único, pois tem por objeto a prática desportiva e está inexoravelmente sujeito à paixão que envolve o esporte. Aqueles que atuam nesse ramo jurídico estão acostumados com o interesse, envolvimento e mesmo com o julgamento de seu trabalho por parte de leigos, que acabam “apoiando” ou “vaiando” os advogados, procuradores e auditores como se atletas fossem. Assim, podemos dizer que a difícil situação a que o nosso Supremo Tribunal Federal tem se sujeitado nos últimos anos, sendo alvo de críticas ferozes, apaixonadas e muitas vezes injustas, originadas por um público não especializado, é algo que já é tratado pelos advogados da área desportiva há muito tempo.

Em ambos os casos, é importante que os especialistas difundam alguns conceitos básicos de sua atividade, para que o público possa construir sua opinião de forma sólida e consciente.

No esporte, em especial no futebol, o tema da Justiça Desportiva sempre aparece nos noticiários. Todo ano, um ou mais casos de repercussão levam os torcedores à loucura. Vamos então a conceitos básicos que, apesar de alguma complexidade, precisam estar na cabeça do torcedor, assim como o 4-3-3, a “marcação alta” e os critérios de desempate na Libertadores:

1. A Justiça Desportiva não é órgão do Poder Judiciário. Mas suas decisões são reconhecidas pela lei, inclusive com regra na Constituição Federal impedindo o Poder Judiciário de rever essas decisões, salvo após esgotadas as instâncias desportivas ou após 60 dias da instauração do processo. Até lá, a instância máxima desportiva, o STJD, tem mais poder do que o STF.

2. A Justiça Desportiva foi criada para resolver as questões disciplinares de forma rápida e especializada. Imagine se cada jogador expulso fosse julgado pelo Poder Judiciário? Levaria quantos anos para uma decisão final? Será que o Judiciário estaria pronto para discutir o que é “carrinho na bola”, “jogador sem condição de jogo” ou, para outros esportes além do futebol, infrações do ciclismo, do tênis, da esgrima?

3. A Justiça Desportiva foi criada para limitar o poder dos cartolas. Sem a Justiça Desportiva, as federações e confederações estariam totalmente livres para normatizar, aplicar e julgar as infrações sem qualquer limite. Atualmente, os TJDs (Tribunais de Justiça Desportiva) são compostos por representantes indicados pelos clubes, pelos atletas, pelos árbitros, pela Federação ou Confederação e pela OAB. Há publicidade nos julgamentos. Certamente há um componente político no relacionamento da entidade com os julgadores (os auditores), mas isso é inerente a qualquer instituição.

4. Há um processo disciplinar desportivo, com finalidade punitiva, similar a um processo penal. Numa síntese grosseira, temos na maioria dos processos desportivos uma “autoridade policial” (o árbitro), que relata seu “inquérito” (a súmula), analisado por um “promotor” (o procurador da Justiça Desportiva), que pode oferecer uma “denúncia” (denúncia aqui também) contra um acusado (um atleta, um treinador, um dirigente, alguém do esporte organizado), que poderá ser representado por um advogado ou defensor. Haverá ao fim o julgamento por um grupo de “juízes” (os auditores). Mas há princípios próprios e exclusivos do Direito Desportivo que muitas vezes se afastam dos princípios do Direito Penal e do Direito Processual Penal.

5. Há um Código que regulamenta as infrações e o processo disciplinar. É o CBJD, Código Brasileiro de Justiça Desportiva, aprovado por um órgão do Poder Executivo Federal (o Conselho Nacional do Esporte). Esse código prevê as infrações e as penas (como o Código Penal prevê crimes e penas), estabelece o procedimento disciplinar (como o Código de Processo Penal), além de tratar da estrutura da Justiça Desportiva (como as normas de organização judiciária e regimentos internos dos tribunais). Ou seja, esses temas não ficam sujeitos à vontade dos dirigentes, clubes e atletas. São definidos por um órgão federal, composto por representantes do Governo e da sociedade.

6. As provas e o julgamento ocorrem dias depois do fato. A sessão de julgamento no Tribunal Desportivo ocorre em regra alguns dias após a ocorrência da infração. As provas são produzidas nessa mesma sessão – são apresentados documentos, vídeos, interrogatório do acusado e depoimentos testemunhais. A decisão é proferida no mesmo dia e no dia seguinte já começa a produzir efeitos. É possível interpor recurso para a instância superior.
Certamente, há uma infinidade de aspectos relevantíssimos referentes à Justiça Desportiva que já vêm sendo objeto de profunda reflexão jurídica. A cada dia, mais e mais profissionais do Direito envolvem-se com esse ramo tão desafiante. Espera-se que essa crescente valorização do Direito Desportivo acabe sendo divulgada não apenas nos círculos especializados, mas também no público em geral. Espera-se que o público compreenda que a solução racional dos conflitos, através do devido processo legal, seja vista como um valor essencial também na atividade desportiva.

*Gil Justen é advogado, Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná e Pós-Graduado em Direito Civil e Empresarial pela Associação Brasileira de Direito Constitucional e em Direito Desportivo pelo Instituto Brasileiro de Direito Desportivo.

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