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Gisele Pereira Mendes

Brasil está na contramão dos princípios norteadores de sua política migratória

Publicado em 02/09/2019

Autor:

Gisele Pereira Mendes |

Gisele Pereira Mendes*

 

Após quase trinta anos de vigência do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/1980), que estabelecia o princípio da segurança nacional como o norteador para o tratamento dos migrantes no Brasil, a Nova Lei de Migração, que entrou em vigor em 21 de novembro de 2017, revogou-o”. A ênfase ao dever de observância ao princípio da dignidade da pessoa humana para nortear o tratamento dos migrantes seria o novo fundamento para a interpretação e aplicação da legislação migratória nacional. A menção clara ao dever de respeitar todos os preceitos dos direitos humanos foi motivo de referenciação positiva internacional.

Aproximadamente um ano depois do avanço humanitário experimentado pelo Direito Migratório, o cenário no Brasil é novamente convertido ao conservadorismo nessa matéria, relembrando a época em que o Estatuto do Estrangeiro foi promulgado e o princípio que o norteava.

O primeiro ponto que evidencia que o país está caminhando na contramão principiológica foi a retirada do Brasil do Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular, que já estava assinado, como um dos primeiros atos do atual Ministro das Relações Exteriores. A justificativa alegada foi o fato de que o instrumento vai de encontro com a política migratória brasileira, o considerando inadequado para tratar da questão migratória, pois, em seu entendimento, esta não seria uma questão global e sim deveria ser analisada de acordo com a realidade e a soberania de cada país.

O referido instrumento internacional, entretanto, assinado por mais de 160 países, em especial no parágrafo 15, item c, assegura o respeito ao princípio da soberania dos Estados como instituto fundamental e o respeito à legislação migratória interna de cada um deles.

O Brasil, estatisticamente, tem três vezes mais nacionais residindo fora do país do que migrantes que estabeleceram residência em seu território. Mesmo assim, a alegação de que a migração não é uma questão internacional e sim de segurança nacional prevaleceu para a retirada do Brasil do Pacto Internacional que estabelece diretrizes para que o tratamento da migração seja abrangido como uma questão humanitária.

Neste sentido, em 26 de julho de 2019 foi publicada no Diário Oficial da União a Portaria Ministerial nº 666, do Ministro de Estado e da Justiça e Segurança Pública, dispondo sobre o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal (CF).

A referida Portaria Ministerial contempla duas novidades legais: a construção do conceito de “pessoa perigosa”, mencionado no art. 7º, § 2º do Estatuto dos Refugiados, e a criação do instituto da deportação sumária, sem previsão legal anterior.

O que chama a atenção é que a Portaria define que os migrantes e visitantes que estariam enquadrados nos conceitos de pessoa perigosa ou de pessoa que tenha praticado ato contrário à CF afirma que a simples suspeita de terem cometido algum dos crimes elencados no artigo 2º da portaria seria suficiente para a aplicação das penalidades.

Art. 2º Para os efeitos desta Portaria, são consideradas pessoas perigosas ou que tenham
praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal aqueles suspeitos de
envolvimento em:

I – terrorismo, nos termos da Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016;
II – grupo criminoso organizado ou associação criminosa armada ou que tenha armas à

disposição, nos termos da Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013;
III – tráfico de drogas, pessoas ou armas de fogo;
IV – pornografia ou exploração sexual infantojuvenil; e
V – torcida com histórico de violência em estádios.
§ 1º As hipóteses mencionadas nos incisos deste artigo poderão ser conhecidas e

avaliadas pela autoridade migratória por meio de:

I – difusão ou informação oficial em ação de cooperação internacional;
II – lista de restrições exaradas por ordem judicial ou por compromisso assumido pela

República Federativa do Brasil perante organismo internacional ou Estado estrangeiro;
III – informação de inteligência proveniente de autoridade brasileira ou estrangeira;
IV – investigação criminal em curso; e
V – sentença penal condenatória.

O Decreto 9.199/17, que regulamenta a Lei de Migração, por exemplo, em seu artigo 192 descreve a medida de retirada compulsória mais gravosa prevista no nova legislação migratória, que é o instituto da expulsão do migrante que tenha praticado atos como o genocídio ou crimes de guerra, direcionando a aplicação da medida aos migrantes que tenham sentença condenatória transitada em julgado e, ainda, garantindo o direito do contraditório e ampla defesa, respeitando o prazo de dez dias para interpor recurso administrativo previsto no artigo 59 da Lei dos Processos Administrativos.

O instituto da deportação sumária criado pela Portaria Ministerial nº 666, que recai também sobre migrante ou visitante que seja meramente suspeito de ter praticado algum dos atos elencados acima, prevê o prazo de 48 horas para que o migrante notificado exerça o seu direito ao contraditório. De acordo com as novas interpretações dadas às normas de Direito Migratório, o migrante suspeito de ser pessoa perigosa tem prazo inferior de defesa e é presumido culpado, com possibilidade de ter prisão cautelar decretada para assegurar a sua deportação e, inclusive, a motivação que levará à sua deportação pode ser sigilosa, impossibilitando definitivamente o seu direito de defesa. Aqui observa-se a limitação do exercício do direito ao contraditório e ampla defesa, garantido pelo Art. 5º, LC, da CF, e ignora-se o princípio da presunção de inocência, art. 5º, LVII, da CF, prevalecendo o princípio da segurança nacional como o norteador da interpretação legal.

Posteriormente, no dia 19 de agosto de 2019, foi publicada no Diário Oficial da União a Portaria Interministerial nº 07 prevendo o impedimento de ingresso no Brasil de altos funcionários do regime venezuelano, que, por seus atos, contrariam os princípios e objetivos na CF. O rol taxativo com os nomes das pessoas que devem ser impedidas de ingressar no Brasil ainda não foi divulgado.

Por fim, apesar dos pontos mencionados para exemplificar a contramão principiológica em que se encontra a política migratória atual, resta claro que os atos do executivo mencionados estão visando regulamentar o disposto no artigo 45, IX, da Lei de Migração, que dispõe sobre o impedimento de ingresso de pessoa que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal.

Ocorre que a redação dessas medidas do ano de 2019 trazem questionemos sobre as prioridades principiológicas do governo brasileiro na área migratória. É importante que se tenha em mente que a Constituição Federal, invocada veementemente para a promulgação dos novos regulamentos que compõem a legislação migratória contemporânea, contempla também um rol de direitos fundamentais inerentes ao indivíduo que devem prevalecer.

*Gisele Pereira Mendes é advogada especialista em Direito Migratório e integrante do Departamento Societário da Andersen Ballão Advocacia.

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