Fundamentos Econômicos e de Validade das Cláusulas de Limitação de Responsabilidade
Publicado em 05/11/2024
Imagine-se um contrato de prestação de serviços corriqueiro acertado entre duas empresas, com uma delas figurando como a prestadora e a outra, como a tomadora dos serviços. Pense-se também que, nesse contrato, as empresas contratantes tenham inserido a seguinte cláusula: “Se a prestadora dos serviços, ao executar o objeto deste contrato, causar danos à tomadora, a responsabilidade da prestadora não incluirá danos indiretos nem lucros cessantes e, em todo e qualquer caso, ficará limitada ao teto de R$100.000,00 (cem mil reais).”
Tem-se aí um exemplo de cláusula de limitação de responsabilidade, que se tem tornado cada vez mais comum em contratos empresariais. Por cláusulas de limitação de responsabilidade, as partes de contratos restringem o dever de reparação integral, que é o dever de compensar totalmente os danos causados. Como se pode extrair do exemplo acima, existe mais de uma maneira de se restringir o dever de reparação integral. Uma possibilidade é se excluir uma categoria de danos indenizáveis (por exemplo, lucros cessantes).
Outra é se estabelecer um teto financeiro para a reparação, que, portanto, passará a não ser mais integral mas parcial (além de diversas outras possibilidades de limitação de responsabilidade presentes em contratos típicos).
Parece possível dizer que um dos fundamentos econômicos para o dever de reparação integral reside na ideia de internalização das externalidades negativas – o que, em palavras mais acessíveis, pode ser pensado como a inclusão dos custos de eventual dano nas atitudes de alguém. Quando alguém decide dirigir um carro, deve estar previamente ciente de que existe a chance de causar danos a pedestres ou a outros condutores. E é pelo dever de reparação integral que esse alguém deverá compensar totalmente os danos que vier a causar a terceiros.
Mas, ainda assim, por que reparar integralmente? Isto é, por que alguém deve considerar todos os custos que as suas decisões implicarão para terceiros? Porque, se alguém tiver de reparar integralmente esses custos (dano), terá então, antes de mais nada, incentivos para tomar cuidados e não ter de reparar. A reparação integral cria incentivos para que o dano seja evitado. Mas não é só isso: a regra da reparação integral tende, em boa parte dos casos, a exigir cuidados na medida certa. Ela não exige nem cuidados em excesso nem cuidados em falta.
Imagine-se que uma regra de trânsito impusesse aos condutores a reparação de apenas 1% (um por cento) do valor dos danos a pedestres ou a outros condutores. Não seria demais imaginar que, na presença dessa regra, os condutores passariam a dirigir com poucos cuidados (cuidados em falta). Imagine-se, por outro lado, uma regra de trânsito que impusesse pena de morte aos condutores que causassem danos a pedestres ou a outros condutores, por menores que fossem esses danos. Aqui, a conclusão iria em direção oposta. Os condutores, é provável, passariam a dirigir com excesso de cuidado (por exemplo, em velocidades baixíssimas). Muitos talvez até mesmo deixassem de dirigir veículos. Mas veículos, como se sabe, não produzem só acidentes; produzem também benefícios sociais, como deslocamentos rápidos, aumentando a produtividade das pessoas. De maneira que nem cuidados em falta nem em excesso são interessantes.
Uma coisa, porém, são regras de responsabilidade civil extracontratual, como as regras de trânsito. Outra são regras contratadas, por partes livres e desimpedidas, de responsabilização civil. Regras extracontratuais de responsabilidade civil, como aquelas que vinculam motoristas e pedestres, partem do seguinte raciocínio hipotético: o que desejariam todas as pessoas de uma determinada coletividade se pudessem contratar antecipadamente – a ideia de um contrato social vinculando a todos – determinada regra de responsabilidade civil? E aí a resposta seria provavelmente: essas pessoas desejariam que as outras tomassem cuidado. Mas elas não desejariam nem cuidados em excesso nem cuidados em falta. Ou seja, escolheriam reparação integral.
Regras contratadas (contratuais) de responsabilidade civil, por seu turno, não precisam de um contrato hipotético. Ao contratar, por exemplo, determinada regra de limitação de responsabilidade, pessoas ou empresas já têm condições de saber, de antemão, a quais incentivos a outra parte de um contrato estará submetida. E poderão concluir se os incentivos impostos por essas regras serão adequados ou insuficientes. Voltando ao exemplo inicial do texto, uma empresa que esteja cogitando tomar os serviços da outra possui, em regra, condições de decidir antecipadamente se uma cláusula que limite o valor indenizável a R$100.000,00 (cem mil reais) é adequada ou não diante da natureza e da dimensão dos serviços contratados.
Se é assim – se tudo aparentemente são flores –, que razões possuiria um juiz ou tribunal para invalidar uma regra contratada de limitação de responsabilidade? Se partes livres e desimpedidas escolheram limitar os danos indenizáveis, por que não dar por válida, em todo e qualquer caso, a escolha das partes? Uma primeira razão para invalidar a escolha das partes atacaria justamente a ideia de partes livres e desimpedidas.
Partes de contratos só são livres e desimpedidas na medida de suas alternativas. Uma empresa que esteja a contratar com outra que, de fato ou de direito, monopolize ou oligopolize um mercado não terá muitas alternativas. A monopolista (ou oligopolista) poderá, por assim dizer, impor suas cláusulas e condições às suas contratantes. Em situações de monopólio ou oligopólio, a liberdade da outra parte contratante fica bastante tolhida.
Uma segunda razão para um juiz ou tribunal invalidar cláusulas de limitação de responsabilidade pode ser encontrada nas ideias do paradoxo da compensação e do risco moral. Os nomes dos conceitos não são tão importantes quanto o conteúdo, que, para os fins deste breve artigo, pode ser assim resumido: incentivos perversos. Cláusulas de limitação de responsabilidade, ao funcionarem quase como um seguro, podem gerar incentivos perversos para a empresa beneficiada por essas cláusulas. Uma empresa, beneficiada por uma cláusula de limitação de responsabilidade e que esteja em conflito com a outra, pode vir a decidir voluntariamente – no jargão jurídico, dolosamente – causar prejuízos à outra, sabedora que é de que o valor indenizável estará limitado a um teto.
De certo modo, essas razões para se invalidar cláusulas limitadoras de responsabilidade – baixa liberdade das partes, paradoxo da compensação e risco moral – estão presentes justamente no julgado mais interessante do Superior Tribunal de Justiça que trata da questão da validade das cláusulas de limitação de responsabilidade: a decisão que resolveu o REsp nº 1.989.291/SP. No voto-vencido, o relator cita uma monografia de Arnoldo Wald, para quem são (também) fundamentos (de validade) das cláusulas de limitação de responsabilidade: (a) a bilateralidade do consentimento; (b) a equivalência de posição das partes; (c) a inexistência de exoneração no caso de dolo ou culpa grave.
Os dois primeiros fundamentos – bilateralidade do consentimento e igualdade de posição – podem ser aproximados da ideia das estruturas de mercado, das quais são espécies monopólio e oligopólio. Quanto mais concorrencial um mercado, mais alternativas tem um contratante e, portanto, menos razões terão juízes e tribunais para invalidar cláusulas de limitação de responsabilidade. A não exoneração para casos dolosos ou de culpa grave, por sua vez, guarda correlação com o paradoxo da compensação e com o risco moral. A invalidação de cláusulas limitadoras, nesses casos, serviria como salvaguarda adicional da outra parte – e de todos os potenciais contratantes daquela coletividade de pessoas. Juízes e tribunais, em certa medida, atuariam aqui como mecanismos adicionais de remoção dos incentivos perversos que cláusulas de limitação de responsabilidade podem criar.
Rafael Berzotti: Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (2010). LLM em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – ISAE/FGV (2016). Mestre em Direito da Regulação (com foco em Law & Economics) pela Fundação Getúlio Vargas (2020). É advogado na Andersen Ballão Advocacia desde 2022.
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