
Impenhorabilidade como instrumento de proteção patrimonial no planejamento empresarial
Publicado em 02/06/2025
*Lorena Geiger Hauser
Em um ambiente empresarial marcado por elevada complexidade jurídica, instabilidade econômica e múltiplos fatores de risco, a proteção e a organização do patrimônio constituem elementos centrais de uma governança eficaz. A constituição de holdings patrimoniais tem se consolidado como uma estratégia recorrente, tanto pela possibilidade de centralização e racionalização da gestão de ativos como pelos benefícios sucessórios e fiscais que pode proporcionar. Ao permitir a concentração de bens sob uma estrutura societária específica, facilita-se o controle de participações, otimiza-se a governança familiar e criam-se mecanismos eficientes para assegurar a continuidade da atividade econômica entre gerações.
A promulgação da Lei nº 13.874/2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, reforçou a centralidade da autonomia privada, conferindo maior relevância à liberdade contratual e à responsabilidade pelas próprias escolhas negociais. Nesse cenário, instrumentos contratuais voltados à limitação de riscos passaram a ocupar papel de destaque no planejamento patrimonial. Dentre eles, ganha relevância a cláusula de impenhorabilidade, frequentemente incorporada aos atos constitutivos de holdings como forma de blindagem contra constrições judiciais incidentes sobre quotas ou lucros em razão de dívidas pessoais dos sócios.
Inspirada no artigo 1.911 do Código Civil, cuja origem se vincula a disposições testamentárias e doações com cláusulas restritivas, a cláusula de impenhorabilidade foi adaptada ao contexto societário como medida protetiva voltada à preservação do núcleo patrimonial. Sua aplicação tem se mostrado particularmente relevante para grupos familiares e para empresários expostos a riscos elevados em razão de suas atividades, permitindo uma distinção mais nítida entre o patrimônio da pessoa jurídica e as obrigações pessoais de seus integrantes. Trata-se de instrumento que, se utilizado corretamente, proporciona estabilidade patrimonial e segurança jurídica à sucessão empresarial.
Importa ressaltar, contudo, que a eficácia da cláusula de impenhorabilidade não é absoluta. Embora reconhecida pelo ordenamento jurídico, sua validade depende da observância de requisitos formais e materiais. A cláusula deve constar de forma expressa nos atos constitutivos e estar fundamentada em uma intenção legítima e juridicamente admissível. Em determinadas situações, a sua eficácia perante terceiros exige ainda a devida publicidade por meio de registro, sendo certo que a inobservância dessas formalidades pode comprometer sua aplicabilidade, sobretudo em disputas judiciais. Além disso, deve-se atentar à conformidade da cláusula com os princípios que norteiam o direito privado, em especial a boa-fé objetiva e a função social da propriedade.
A jurisprudência revela crescente atenção quanto à finalidade das estruturas patrimoniais e ao uso de cláusulas restritivas. Especialmente o Tribunal de Justiça de São Paulo tem relativizado a eficácia da impenhorabilidade quando verifica desvio de finalidade, tentativa de fraude contra credores ou confusão entre o patrimônio da holding e o dos sócios. Nessas hipóteses, a proteção conferida pela cláusula pode ser afastada pela desconsideração da personalidade jurídica, nos casos em que esta é utilizada como instrumento para burlar obrigações legais ou frustrar o legítimo direito de terceiros.
Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a validade de cláusulas de impenhorabilidade, inalienabilidade e incomunicabilidade, desde que instituídas com razoabilidade, proporcionalidade e sem afronta a normas de ordem pública. O tribunal tem reiterado que a proteção patrimonial é admissível quando enquadrada em um planejamento lícito, orientado à continuidade dos negócios e à preservação do patrimônio familiar, e não como meio ardiloso para o esvaziamento de garantias de credores.
Nesse sentido, a adoção da cláusula de impenhorabilidade exige atenção técnica apurada e deve estar inserida em um projeto mais amplo de planejamento patrimonial, sucessório e societário, sempre ancorado na legalidade e na ética negocial. É fundamental que sua implementação ocorra com o suporte de assessoria jurídica especializada, de modo a assegurar sua conformidade com os requisitos legais e sua compatibilidade com os valores estruturantes do direito privado brasileiro. A previsibilidade, a transparência e a prudência devem orientar cada etapa da estruturação, desde a redação da cláusula até o registro dos atos societários.
A utilização estratégica da cláusula de impenhorabilidade pode, portanto, representar uma importante salvaguarda para o patrimônio empresarial, especialmente em estruturas familiares que visam à perpetuação da atividade econômica e à proteção dos frutos do trabalho de gerações. No entanto, a sua eficácia está intrinsecamente ligada à clareza de propósitos e à estrita observância dos limites legais. Quando manejada de forma legítima e criteriosa, a cláusula contribui para a solidez das estruturas patrimoniais. Quando utilizada de forma oportunista ou distorcida, torna-se vulnerável à invalidação judicial, comprometendo exatamente os bens que se pretendia resguardar. Enfim, o sucesso da ferramenta reside em seu uso ético e tecnicamente fundamentado, como expressão de um planejamento juridicamente responsável.
*Lorena Geiger Hauser é advogada da Andersen Ballão Advocacia e especialista em direito empresarial.
Esse artigo também foi publicado pelo Conjur em 27 de maio de 2025: https://www.conjur.com.br/2025-mai-27/impenhorabilidade-como-instrumento-de-protecao-patrimonial-no-planejamento-empresarial/
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