

Preços de Transferência no Brasil: novo marco legal e os desafios na prática tributária
Publicado em 06/05/2025
*Maria Alice Boscardin e Amauri Melo
A Lei nº 14.596/2023 promoveu uma profunda reformulação das regras de Preços de Transferência no Brasil, aproximando o país às diretrizes da OCDE, que são adotadas pelas maiores economias globais.
O conceito de Preços de Transferência parte da premissa de que empresas de um mesmo grupo econômico, localizadas em diferentes jurisdições, possam estabelecer os preços de transações entre si para alocar lucros em países com menor carga tributária. Para combater condutas abusivas, a OCDE criou um conjunto normativo supranacional norteado pelo princípio do Arm’s Length, segundo o qual os preços e condições praticados entre partes relacionadas devem ser equivalentes aos que seriam praticados entre empresas independentes, em condições normais de mercado, para redução da evasão fiscal.
A legislação brasileira passou a disciplinar a matéria na década de 90, com a edição da Lei nº 9.430/1996, prevendo métodos para controle dos preços praticados em transações internacionais entre partes relacionadas. O foco estava nas importações e exportações de bens e serviços, buscando evitar a redução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
Posteriormente, a Lei nº 12.715/2012 e a IN RFB nº 1.312/2012 ampliaram o escopo normativo para incluir operações com paraísos fiscais. Ainda assim, a legislação era excessivamente prescritiva, com métodos padronizados e sem considerar as particularidades operacionais de cada setor, além de distante dos dos padrões internacionais criados pela OCDE.
Com a promulgação da Lei nº 14.596/2023, regulamentada pela IN RFB nº 2.161/2023, o Brasil adota, de forma expressa, o Princípio do Arm’s Length, dispondo sobre critérios e requisitos para verificação da conformidade dos Preços de Transferência, assim como a possibilidade de o contribuinte se basear em métodos de cálculo previstos na legislação, ou ainda, um método único e personalizado à sua realidade, desde que tecnicamente justificado e aderente às condições de mercado. Essa abordagem marca um avanço importante do alinhamento das diretrizes brasileiras aos padrões internacionais, além de maior adaptabilidade quanto aos métodos, ainda que as margens anteriormente pré-determinadas representassem maior facilidade de compliance por parte dos contribuintes.
Um dos pontos centrais de mudança da nova regra é a ampliação do conceito de operações relacionadas para transações controladas, que passa a abranger não apenas bens e serviços, mas também direitos, intangíveis, contratos de compartilhamento de custos e operações financeiras (empréstimos, garantias, seguros, entre outros). Dessa forma, qualquer operação realizada entre partes relacionadas, mesmo que não envolva movimentação física de bens, por exemplo, poderá estar sujeita às regras de preços de transferência.
Por outro lado, é importante destacar que a regulamentação da nova lei ainda está incompleta, faltando orientações específicas sobre temas críticos, como intangíveis, serviços intragrupo, reestruturações de negócios e contratos de compartilhamento de custos.
A nova legislação determina que, quando uma transação controlada for realizada em termos e condições diferentes daquelas que seriam praticadas entre partes independentes, o lucro tributável deverá ser ajustado, refletindo o que seria auferido em uma situação de mercado, o que já era previsto no regime anterior.
Agora, a novidade compreende a realização de ajustes espontâneos e compensatórios, por parte dos contribuintes. Tais ajustes permitem, inclusive, a realização de uma exclusão do Lucro Real referente à custos incorridos em valor inferior ao calculado pelo limite do Arm’s Length. Representam, portanto, uma inovação importante da legislação que ainda deve ser objeto de debates entre o Fisco e o contribuinte, já que ainda carecem de uma melhor definição quanto a eventuais impactos indiretos, como a necessidade de recálculo dos tributos aduaneiros, por exemplo.
Ainda, está previsto o ajuste primário a ser efetuado pela autoridade fiscal com vistas a adicionar à base de cálculo dos tributos, os resultados que seriam obtidos pela pessoa jurídica domiciliada no Brasil, caso os termos e as condições da transação controlada tivessem sido estabelecidos de acordo com a legislação.
Indo adiante, em linha com a prática global definida pela OCDE, a nova sistemática exige que as empresas mantenham e enviem à autoridade fiscal documentação técnica robusta relacionada aos cálculos e demais aspectos de suas operações controladas:
- Arquivo Global ou Master File: com informações relativas à estrutura e às atividades do grupo multinacional a que pertence e às demais entidades integrantes do grupo.
- Arquivo Local: com informações relativas às transações controladas e às partes envolvidas nessas transações. Poderá ser Simplificado ou Completo.
- Para transações controladas que somem entre R$ 15.000.000 e R$ 500.000.000, a empresa deve elaborar o Arquivo Local Simplificado, com um conjunto menos abrangente de informações. Resumidamente, o documento deverá incluir: (i) um organograma detalhando a estrutura societária e os vínculos entre a entidade local e suas partes relacionadas; (ii) uma síntese sobre a natureza e o volume das transações; (iii) descrição dos métodos de preços de transferência e respectivas justificativas; e (iv) os cálculos efetivos de preços de transferência.
- Se o valor total das transações controladas for igual ou superior a R$ 500.000.000, a empresa deverá preparar o Arquivo Local Completo, contendo descrições completas das transações controladas, análises de comparabilidade, métodos de precificação utilizados e justificativas, além de informações financeiras e operacionais das partes envolvidas.
- Escrituração Contábil Fiscal (ECF) – Registros X360 e X370: exige a informação acerca do valor incorrido nas importações e exportações de bens, direitos, serviços, intangíveis, operações financeiras e contratos de compartilhamento de custos com partes relacionadas e paraísos fiscais. Grande parte dessas informações também é exigida para a elaboração Arquivo Local.
Por outro lado, as empresas estão dispensadas da apresentação dos Arquivos Global e Local, caso o valor total das transações controladas, no ano-calendário anterior, seja inferior a R$ 15.000.000.
Um ponto relevante a ser observado é que, mesmo nos casos em que a empresa não está obrigada ao envio dos mencionados arquivos, boa parte dessas informações precisa ser reportada nos registros da ECF, exigindo que a empresa possua essas informações ainda que dispensada de sua formalização e envio, bem como mantenha a coerência entre os documentos e registros contábeis. Divergências podem ensejar sanções fiscais e questionamentos em auditoria.
Acerca dos cálculos para a verificação de ajustes, há críticas quanto à forma como a legislação foi estruturada. Os critérios para determinação do preço parâmetro, embora mais técnicos, carecem de clareza quanto à sua aplicação. A própria Receita Federal ainda não regulamentou aspectos essenciais, o que gera insegurança jurídica até o presente momento.
Em outro ponto relacionado aos royalties, por exemplo, a regra anterior estava atrelada à dedutibilidade dos pagamentos, sujeita a limites percentuais por setor sobre a receita bruta, além do registro dos contratos no INPI. Com a nova legislação, prevalece uma regra mais subjetiva que, apesar de trazer flexibilidade para que o contribuinte deduza custos desta natureza, também abre margem para questionamentos por parte do Fisco, o que aumenta a incerteza para grupos multinacionais.
Diante das incertezas e complexidades da nova legislação, recomenda-se que as empresas:
- Elaborem e revisem suas políticas internas de preços de transferência, garantindo que os contratos e práticas comerciais estejam alinhados com os parâmetros de mercado.
- Contratem estudos técnicos personalizados que validem os métodos utilizados e sirvam de suporte em caso de fiscalização.
- Assegurem a coerência entre o Arquivo Global, Arquivo Local e a ECF, inclusive quanto aos dados contábeis e registros fiscais.
- Acompanhem atentamente as regulamentações complementares da Receita Federal, especialmente no que se refere a intangíveis, serviços intragrupo e contratos de custos compartilhados.
O novo regime de Preços de Transferência representa uma modernização necessária do sistema tributário brasileiro, com avanços claros no alinhamento internacional e na flexibilização das metodologias. Contudo, o novo modelo também impõe desafios significativos, especialmente quanto à documentação, à ausência de regras de materialidade e à falta de regulamentação sobre temas sensíveis. Cabe às empresas se prepararem com planejamento, documentação adequada e orientação técnica especializada, a fim de mitigar de riscos e evitar a aplicação de penalidades.
*Maria Alice Boscardin é sócia-coordenadora da Andersen Ballão Advocacia, especialista em direito tributário. Amauri Melo é advogado da Andersen Ballão Advocacia, especialista em direito tributário.
O artigo acima também foi publicado pelo Conjur: https://www.conjur.com.br/2025-mai-12/precos-de-transferencia-no-brasil-novo-marco-legal-e-os-desafios-na-pratica-tributaria/
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