Notas sobre Quotas Preferenciais sem Direito a Voto em Limitadas
Publicado em 18/12/2020
Em 10 de junho desse ano, o Departamento de Registro Empresarial e Integração (DREI) emitiu a Instrução Normativa nº 81/2020 consolidando diversos pontos muito discutidos dentro do direito empresarial.
Em destaque, o que certamente se caracteriza uma conquista para a área em comento, foi a autorização de registro de quotas preferenciais em sociedades limitadas, com ou sem restrição de voto. Como será detalhado a seguir, ainda que em alguma medida fosse defensável que quotas desta classe deveriam ser admitidas em sociedade limitadas de acordo com a lei aplicável, a ausência da definição de procedimentos pelo órgão responsável pelo registro certamente dificultava, se não impossibilitava, a utilização do instituto.
Ao analisar o novo manual de registro das sociedades limitadas à luz das novidades introduzidas, nota-se que o DREI incluiu uma previsão que estabelece que passariam a ser admitidas quotas de classes distintas nas sociedades limitadas, devendo haver previsão expressa no contrato social sobre as proporções e condições atreladas a tais quotas.
Por clareza, cumpre lembrar que as quotas preferenciais são aquelas que conferem a seus titulares vantagens patrimoniais e/ou privilégios especiais não atribuídos às demais quotas, acompanhadas, na maioria das vezes, de restrições ao direito de voto. Consta também na Instrução Normativa nº 81/2020 a previsão de que, caso a sociedade limitada admita a existência de quota preferencial sem direito a voto, esta não será computada para fins de cálculo dos quóruns de instalação e deliberação previstos no Código Civil.
Ademais, o contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima, conforme art. 1.053, parágrafo único do Código Civil*, e para os fins de registro perante a Junta Comercial competente, a adoção de qualquer instituto próprio das sociedades anônimas nas sociedades limitadas torna-se legal, inclusive no que diz respeito às quotas preferenciais.
Sendo matéria de muita discussão durante anos, a regulamentação da norma encontra respaldo no art. 3º, inciso VIII da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019**), o qual prevê a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários sejam objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública.
Quando tratamos da liberdade de uma sociedade limitada para praticar um ato não vedado por lei, devemos levar em consideração a autonomia privada, a liberdade contratual e a legalidade, pois estes consolidam o direito das partes contratantes de escolher se querem ou não celebrar um contrato, bem como seu conteúdo e suas condições, desde que acordadas em boa-fé, respeitando a função social do contrato, e não contrariando nenhum dispositivo legal[1].
Do ponto de vista do direito privado, o princípio da legalidade estipula que o particular poderá fazer tudo aquilo que não lhe for vedado legalmente[2], assim, não haveria restrição legal para que as sociedades limitadas contemplassem quotas preferenciais em seus contratos sociais.
Discute-se a matéria desde a entrada em vigor do Código Civil, em 10 de janeiro de 2002. Tal debate gira em torno da possibilidade de o capital social de sociedades limitadas contemplar quotas preferenciais, já que o Código Civil é silente a respeito do tema, e o fato de que parte da doutrina entende que as quotas preferenciais não deveriam ser admitidas com fundamento na prevalência do caráter intuitu personae intrínseco às sociedades limitadas[3]. Ainda, quando se tem a disposição de que a sociedade limitada tem regência supletiva pela Lei 6.404/76, a ideia de vínculo menos estável entre os sócios e a possibilidade da utilização de quotas preferenciais se fortalecia; todavia, na prática esse instituto era muito pouco utilizado e o registro nas Juntas Comerciais era inviabilizado.
Antes da Instrução Normativa nº 81/2020, não havia entendimento uniforme das juntas comerciais a respeito dessa polêmica. Algumas delas aceitavam o registro de contratos sociais contemplando quotas sem direito a voto ou com direito restrito de voto, enquanto outras rechaçavam tal possibilidade.
Grande parte das disposições regulamentadas pela Instrução Normativa nº 81/2020 foram importadas da Instrução Normativa nº 38/2017. Nessa oportunidade, o DREI fez constar no manual de registro das sociedades limitadas a possibilidade de se estabelecer quotas preferenciais em sociedades limitadas, por meio da inserção do item 1.4, inciso II, alínea “b”, no manual de registro de sociedades limitadas. Tal item previa que a regência supletiva da Lei das S.A. seria presumida para sociedades limitadas que possuíssem quotas preferenciais.
Mesmo com a disposição mencionada, havia grandes divergências acerca dos pormenores atrelados ao fracionamento do capital social em tais quotas, por exemplo, a possibilidade de suprimir ou limitar o direito a voto[4].
À época, o ilustre professor Pablo Arruda abordou a questão, explicando que, com a publicação da Instrução Normativa do n° 38/2017 do DREI, passou a existir a previsão expressa da possibilidade de adoção de institutos das sociedades anônimas, como as quotas em tesouraria e quotas preferenciais, e que tal fato ampliaria o campo da atuação das sociedades limitadas como meio para estruturação de atividades econômicas de maior importância.
Nesse diapasão, notamos que o problema que tínhamos até então é que essa diferença de entendimento gerava grande insegurança jurídica a respeito do tema e serviu para vedar, na prática, que as sociedades limitadas criassem quotas preferenciais.
As mudanças mencionadas acima foram bem-vindas dentro da seara do direito empresarial, e podemos afirmar que devem favorecer a estruturação de novos negócios e garantir às sociedades limitadas, especialmente a novas empresas, maneiras diversas de pensar a forma de investimento dos sócios.
Todavia, alguns comentários foram feitos acerca do tema que devem ser abordados para verificarmos a validade das disposições da Instrução Normativa nº 81/2020. O primeiro refere-se à competência do DREI para estabelecer a possibilidade de criação de quotas preferenciais nas sociedades limitadas, considerando que o DREI é um órgão cuja finalidade legal é criar normas para solucionar dúvidas relativas à interpretação de leis e regulamentos sobre o registro de empresas, nos termos do art. 4º da Lei nº 8.934/94.
Assim, um eventual sócio de uma sociedade limitada que venha a se sentir prejudicado pelo fracionamento do capital social em quotas preferenciais poderá levar a questão para ser discutida no judiciário, sob a alegação de incompetência do DREI para “legislar” sobre quotas preferenciais em sociedades limitadas[5].
Não obstante a questão da competência do DREI, a Instrução Normativa nº 81/2020 não indica taxativamente quais vantagens poderão ser atribuídas às quotas preferenciais, restando obscuro se as sociedades limitadas ficarão restritas ao uso das vantagens permitidas na Lei das S.A., que deverá ser aplicada de forma supletiva, ou se poderão inovar com outras vantagens não previstas na lei, tendo como base o princípio da autonomia da vontade das partes, conforme disposto pelo art. 3º, inciso VIII da Lei da Liberdade Econômica, comentado acima.
Para esclarecer alguma dessas dúvidas, cabe trazer à baila o Projeto de Lei n° 6.104 de 2019 (PL 6.104/2019), o qual visa alterar o Código Civil para permitir a criação de quotas preferenciais sem ou com restrição do direito a voto em sociedade do tipo limitada. A sugestão de referido projeto de lei é introduzir o art. 1.055-A ao Código Civil, a fim de assegurar a admissão de quotas preferenciais com (i) admissão de prioridade na distribuição de dividendos; (ii) prioridade no reembolso de capital; (iii) direito de eleger um ou mais membros dos órgãos de administração, e (iv) outras vantagens expressamente especificadas no contrato social[6].
Não apenas a questão da taxatividade acerca das vantagens que seriam permitidas estaria sanada, mas também abarcaria disposições sobre o procedimento acerca da autonomia da sociedade em dispor os direitos sobre as quotas preferenciais, bem como a questão acerca dos quóruns de instalação para as deliberações em reunião de sócios[7].
A intenção do PL 6.104/2019 ao introduzir as disposições do art. 1.055-A ao Código Civil é trazer subsídios para a criação de meios mais eficientes de comunicação da sociedade com seus investidores, contribuindo, assim, para a atração de investidores para a sociedade limitada, com geração de emprego, renda e arrecadação[8].
Uma das justificativas apresentadas pelo PL 6.104/2019 é atinente ao possível aumento da capacidade do tipo societário em atrair recursos financeiros capazes de fomentar a economia e gerar empregos em um ambiente de negócios que representa cerca de 98% (noventa e oito por cento) das sociedades registradas nas juntas comerciais do país.
Por fim, mas não menos importante, pode-se afirmar que, ao se admitir tal instituto dentro das sociedades limitadas, existe a possibilidade de desburocratização da publicização de atos das sociedades do tipo limitada, como convocações para reuniões e assembleias, por exemplo.
Com a criação das quotas sem voto ou com voto restrito, será possível oferecer ao investidor mais uma possibilidade de investimento, sem que haja a necessidade burocrática de constituição de uma sociedade anônima a fim de viabilizar a participação nos negócios sem intervenção política ou administrativa. Exemplo disso seria a questão da convocação para reuniões de sócios.
As micro e pequenas empresas estão dispensadas de convocar reuniões ou assembleias de sócios, na forma do Art. 70 da Lei Complementar 123/06, assim como estão de publicar qualquer ato societário, conforme Art. 71 da mesma Lei. Em contrapartida, as sociedades anônimas abertas foram dispensadas de publicar em jornais físicos, passando a realizar as publicações ordenadas por Lei nos sites eletrônicos da Comissão de Valores Mobiliários e da entidade administradora do mercado em que os valores mobiliários da companhia estiverem admitidos à negociação, além da possibilidade da própria empresa[9].
Observa-se que, mais uma vez, as mudanças evolutivas não alcançaram a sociedade limitada, mesmo que seja o mais usual dos tipos societários.
Sem prejuízo do enorme custo financeiro e burocrático, a publicação em jornal é, sem dúvida, o meio menos eficiente de atingir a ciência dos sócios, especialmente sócios investidores, desligados das políticas e da gestão da sociedade (cotistas preferencialistas sem direito de voto).
Com isso, a criação de meio mais eficiente de comunicação da sociedade com seus investidores contribuirá para o alcance dos objetivos propostos pelo PL 6.104/2019 em relação à atração de investidores para a sociedade limitada, a fim de inserir dentro de um tipo societário diversas vantagens e particularidades hoje inexistentes.
Lívia Marina Siqueira de Moraes é advogada do Departamento Corporativo da Andersen Ballão Advocacia.
*http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm
**http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm
[1] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil.: Contratos. Rio de Janeiro: Saraiva, 2011. p. 35-39.
[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 45.
[3] TAVARES BORBA, José Edwaldo. Direito Societário. 1998, 4 edição, Freitas Bastos.
[4] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial – Volume 2; Direito de empresa – 14ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2010. p. 380-384.
[5] Acesso em 10/12/2020: https://migalhas.uol.com.br/depeso/256660/as-novas-instrucoes-normativas-drei: Outra festejada medida foi a previsão expressa da possibilidade da adoção de institutos típicos das sociedades anônimas pelas limitadas, a saber: quotas em tesouraria, quotas preferenciais, Conselho de Administração e Conselho Fiscal (este último admitido expressamente no capítulo de LTDA, mas de pouca ocorrência prática). Conforme o inciso II do item 1.4 do Anexo II da IN DREI 38/17, a adoção de qualquer um destes institutos por uma sociedade limitada acarretará a presunção da adoção da regência supletiva da lei 6.404/76, nos termos do art. 1.053, parágrafo único do Código Civil. Em que pese a merecida crítica quanto a essa presunção (e que enseja trabalho outro), fato é que a nova posição registral ampliará o campo de atuação da LTDA como veículo para atividades econômicas de maior porte e estrutura[5].(Destaque próprio).
[6] Art. 1.055-A. É admitida a criação de cotas preferenciais de uma ou mais classes na sociedade limitada, observado, no que couber, o disposto na Lei 6.404/76, podendo as preferências ou vantagens consistir, isolada ou cumulativamente, em:
I – prioridade na distribuição de dividendo, fixo ou mínimo;
II – prioridade no reembolso do capital;
III – direito de eleger, em votação em separado, um ou mais membros dos órgãos de administração;
IV – direito de veto no caso de alteração do contrato social, nas matérias que especificar o contrato social ou suas alterações;
V – outras vantagens expressamente especificadas no contrato social ou em suas alterações
[7] Art. 1.055-A
[…]
- 1º É admitida a emissão de cotas preferenciais sem direito a voto ou com voto restrito.
- 2º O número de cotas preferenciais sem direito a voto, ou sujeitas a restrição no exercício desse direito, não pode ultrapassar 50% (cinquenta por cento) do total das cotas emitidas.
- 3º Os quóruns de instalação e deliberação em reunião ou assembleia de sócios serão computados exclusivamente sobre o capital votante.
- 4º O direito de participar nas reuniões e assembleias de sócios, inclusive com exercício do direito de voz, é assegurado a todos os cotistas, independentemente do direito de voto.
[8] Projeto de Lei 6.104/2019, página 8. Acesso em 10/12/2020:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1835870&filename=PL+6104/2019
[9] Nova redação dada ao Art. 289 da Lei 6.404/76 pela MP 892.
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